Até 30 de janeiro, o país registrou 217 mil casos de dengue, mais do que o triplo no mesmo período no ano passado. Neste mês, 15 pessoas morreram por complicações da doença e havia 149 óbitos em investigação, contra 41 no mesmo espaço de tempo em 2023.
A situação é muito preocupante porque, historicamente, os meses de março, abril e maio concentram mais casos. Estamos longe do pico da epidemia.
Como chegamos a esse número alarmante de casos e mortes em investigação, com índices de infestação altíssimos, e que pode piorar nos próximos meses?
A situação atual é resultado da soma de vários fatores e diversos erros. Alguns deles podem ser considerados incontroláveis, como o calor excessivo e as chuvas intensas. Mas isso se completa com um conjunto de falhas muito graves no controle do vetor (o mosquito Aedes aegypti) e na comunicação com a população.
A existência de condições propícias à dengue foi potencializada e agravada pelo desmonte da inteligência de controle de doenças e vetores nos estados e municípios nos quatro anos do governo anterior, de 2019 a 2022.
Foram desfeitas não somente as equipes de controle de vetores e endemias, mas epidemiologistas altamente capacitados deixaram o Ministério da Saúde na gestão anterior por falta de condições de trabalho.
Seja por motivos políticos ou por uma profunda ignorância das necessidades da saúde brasileira, o controle de vetores foi negligenciado. O resultado é o agravamento de uma situação contra a qual lutamos há quatro décadas, desde o ressurgimento da doença nos anos 1980.
Muito bem adaptado às cidades, o Aedes aegypti se aproveitou da ocupação crescente e desordenada, do acúmulo de resíduos, dos ferros-velhos e aterros com água acumulada, da falta de saneamento básico e de escoamento para as águas.
Praticamente erradicado na década de 1940 com a campanha contra a febre amarela urbana, o mosquito ressurgiu e nunca mais foi eliminado. Nem mesmo uma reforma urbana profunda seria capaz de eliminá-lo das cidades. Lembrando que esse mosquito transmite dengue, zika, chikungunya e febre amarela ao ser infectado por um desses vírus.
Treinamento urgente para profissionais da saúde
Como medida imediata, precisamos nos capacitar para reduzir as mortes por dengue, uma doença que não tem taxa alta de letalidade.
A maior parte dos óbitos por dengue ainda decorre da subestimação da gravidade do paciente infectado por parte dos profissionais da saúde. Isso impacta diretamente na qualidade do atendimento prestado.
Os sinais de alarme da dengue que indicam a progressão para uma condição grave muitas vezes não são evidentes, mas podem ser identificados por alguém que conheça a evolução da doença.
Se o paciente chega com sinais de dengue grave, todo médico consegue reconhecer a gravidade. Mas o desafio que tem se mostrado é identificar os sinais de alarme da dengue C. São pacientes que devem ser prontamente internados e colocados em hidratação vigorosa.
De modo geral, pessoas com condições clínicas especiais, risco social ou comorbidades (hipertensão arterial, diabetes, doença pulmonar obstrutiva crônica, doença renal e doenças hematológicas, entre outras) com suspeita de dengue devem fazer um hemograma para serem devidamente diagnosticadas. Só depois desse exame é possível saber se o paciente precisa ser internado.
A tendência dos profissionais de saúde, no entanto, é querer liberar o paciente logo. Eles hidratam e liberam o indivíduo sem esperar o resultado do exame de sangue. Isso pode levar a erros, já que o resultado do hemograma de um paciente classificado como dengue B, mas com comorbidades, pode revelar que essa pessoa tem riscos importantes de agravamento do quadro.
Na epidemia recente, testemunhei três casos em que isso ocorreu. Esses pacientes enfrentaram complicações graves e precisaram voltar ao serviço de saúde para serem internados devido ao não reconhecimento dos sinais de alarme. Felizmente, todos sobreviveram.
Atualmente, colaboro com a Unesp (Universidade Estadual de São Paulo), onde ensino, para capacitar unidades básicas de saúde em vários municípios, visando melhorar o reconhecimento da gravidade.
Situações como essa evidenciam a necessidade de treinamento dos profissionais da saúde para aprimorar os procedimentos e garantir o tratamento adequado.
Não por falta de recursos, mas sim de treinamento, hospitais privados têm menor experiência do que os serviços públicos em lidar com casos graves de dengue.
Em 2015, a maior epidemia até o momento, tivemos mais da metade das mortes no estado de São Paulo ocorrendo em hospitais privados na capital paulista e Campinas (SP). Por isso, é fundamental capacitar também os serviços de saúde privados para garantir um tratamento adequado.
Não conseguimos educar para prevenir dengue
Aprendemos muito em quatro décadas de combate ao vetor. A primeira lição é que precisa haver uma ação conjunta de governos, cidadãos, cidadãs e famílias para combater a doença.
Recentemente, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, fez esse apelo durante uma reunião com conselhos, instituições e representantes de estados e municípios.
É a pura verdade. A maioria das transmissões ocorre no domicílio. A fêmea do Aedes aegypti, transmissora da doença, prefere ficar perto das pessoas, dentro das casas, preferencialmente na altura do rodapé.
No entanto, ainda que estejamos falando há anos para as pessoas ficarem atentas aos criadouros de mosquito dentro de suas casas, não funcionou.
Os relatos que escuto frequentemente dos agentes de controle de vetores, aqueles que visitam os moradores, confirmam que a população continua achando que o mosquito vem da casa do vizinho, do terreno baldio, da escola. Nunca do seu próprio quintal. Grave engano, como atestam os agentes.
Em outras palavras, continuamos falhando ao não responsabilizar devidamente as pessoas pelos criadouros presentes em suas próprias residências, assim como nas nossas.
As equipes de controle vetorial também enfrentam desafios cada vez maiores para entrar nos domicílios. As pessoas ficaram com mais receio durante a pandemia de covid, o que segue aumentando por questões de segurança. São circunstâncias compreensíveis, mas ruins para os profissionais da saúde.
A resistência da população evidencia a complexidade do trabalho dos agentes, que não apenas eliminam criadouros, mas aplicam diferentes medidas de controle. Isso inclui o uso de larvicidas não prejudiciais aos seres humanos, aos seres humanos, o fechamento de caixas d'água e a introdução de bactérias que impedem o desenvolvimento das larvas.
As estratégias de combate à dengue estão sendo revistas.
Já se sabe que a pulverização intensiva, por exemplo, nas ruas, não atinge os principais focos de larvas e criadouros nas casas.
Além disso, os estudos com mosquitos transgênicos não geraram resultados expressivos após mais de 10 anos de pesquisa, sem consenso sobre sua eficácia. Além do esforço cotidiano de conscientização da população feito pelos agentes de controle de vetores e endemias, há motivo para otimismo na batalha contra a dengue. O início da vacinação em fevereiro próximo com o imunizante Qdenga, produzido pela farmacêutica Takeda, marca o início de um golpe forte na doença.
A vacina mostrou excelente perfil de segurança e reduz em 87% as chances de internação por dengue grave. A estratégia de vacinar os mais jovens, recomendada pelo OMS (Organização Mundial da Saúde), é uma medida inteligente, visando um grupo que provavelmente manterá hábitos de proteção no futuro.
Vale lembrar que as perspectivas positivas com a vacina não devem servir como pretexto para enfraquecer a vigilância, deixar de treinar médicos ou investir nas equipes de controle de mosquitos. A batalha é longa e agora temos um aliado de peso, mas precisamos nos valer de todos os recursos de prevenção possíveis.
*Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza é professor titular de infectologia e diretor da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp.